Herrar é umano
Nas tintas para o novo milénio. Um processo evolutivo no lado descendente da curva.
A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo.
"Sentou-se na cama e explicou-me que tinham andado a investigar a minha vida privada. Tinham descoberto que a minha mãe morrera recentemente no asilo. Procedera-se então a um inquérito em Marengo. Os investigadores tinham sabido que eu «dera provas de insensibilidade» no dia do enterro. «Veja se compreende», disse o advogado, «custa-me um bocado perguntar-lhe isto. Mas é muito importante. E será um grande argumento para a acusação, se eu não conseguir dar resposta». Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me se eu, nesse dia, tinha tido pena da minha mãe. Esta pergunta muito me espantou, e parecia-me que não era capaz de a fazer a alguém. Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo, e que era difícil dar-lhe uma resposta. É claro que gostava da minha mãe, mas isso não queria dizer nada. Todos os seres saudáveis tinham, em certas ocasiões, desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam. Aqui, o advogado cortou-me a palavra e mostrou-se muito agitado. Obrigou-me a prometer que não diria isto na audiência, nem ao juiz de instrução. Expliquei-lhe, no entanto, que a minha natureza era feita de tal modo que as minhas necessidades físicas perturbavam frequentemente os meus sentimentos. No dia do enterro, estava muito cansado e com muito sono, de forma que não dei lá muito bem pelo que se passou. O que podia afirmar, com toda a certeza, era que preferia que a mãe não tivesse morrido. Mas o advogado não ficou contente. Disse: «Isso não chega»."
Extracto de L'étranger
The record is not over yet
Para a maior parte as pessoas a família [até 1957 na Europa] sempre fora uma unidade de produção, não de consumo.
A Portugalite
Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.
A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.
Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher, é natural que se junte aos demais para chorar a sua sorte e vilipendiar a causa comum de todos os seus males. Assim sempre se vão consolando uns aos outros. Bebem uns copos, chamam-lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. Às vezes, para acentuar a tristeza, recordam-se dos bons velhos tempos em que Portugal, hoje megera ingrata que se vende na via (e na vida) pública, era uma namorada graciosa e senhora respeitada em todos os continentes. E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo em uníssono «e hoje é o que se sabe...».
Não é só o facto de não saberem nem poderem falar noutra coisa que prova a existência duma paixão. Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. O contraste entre a beleza à superfície e a vileza subterrânea dá maior acidez às lágrimas. É por isso que só há um tabu naquilo que se pode dizer de Portugal. Pode dizer-se que é bárbara e miserável, traiçoeira e ingrata, e tudo o mais que há de aviltante que se queira. O que não se pode dizer é «Portugal é um país feio». Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão.
Miguel Esteves Cardoso, in 'A Causa das Coisas'
A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.
Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher, é natural que se junte aos demais para chorar a sua sorte e vilipendiar a causa comum de todos os seus males. Assim sempre se vão consolando uns aos outros. Bebem uns copos, chamam-lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. Às vezes, para acentuar a tristeza, recordam-se dos bons velhos tempos em que Portugal, hoje megera ingrata que se vende na via (e na vida) pública, era uma namorada graciosa e senhora respeitada em todos os continentes. E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo em uníssono «e hoje é o que se sabe...».
Não é só o facto de não saberem nem poderem falar noutra coisa que prova a existência duma paixão. Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. O contraste entre a beleza à superfície e a vileza subterrânea dá maior acidez às lágrimas. É por isso que só há um tabu naquilo que se pode dizer de Portugal. Pode dizer-se que é bárbara e miserável, traiçoeira e ingrata, e tudo o mais que há de aviltante que se queira. O que não se pode dizer é «Portugal é um país feio». Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão.
Em terceiro lugar, os portugueses só deixam que outros portugueses digam mal de Portugal. Só quem sofreu nos braços dela (e que ela vai tratando ignobilmente a seu bel-prazer, por saber que nunca lhe hão-de fugir), se pode legitimamente queixar. Isto porque Portugal, sendo uma lindíssima meretriz, engata os estrangeiros descaradamente, desfazendo-se em encantos e seduções para com eles. Esta ideia exprime-se no dogma nacional que reza «Isto é bom é para os turistas», como quem diz «A viciosa da minha mulher a mim não me dá nada, mas atira-se a qualquer estranho que lhe apareça à frente». Qualquer estrangeiro que tenha a ousadia e o mau gosto de se fazer esquisito frente aos avanços despudorados de Portugal está condenado ao maior desagrado de todos.
Esta atitude é lógica, porque só há uma coisa pior do que se ser atraiçoado por quem se ama — é não se ser atraiçoado só porque o outro a acha feia e não a quer. À traição da mulher junta-se o insulto do outro, ao não achá-la sequer digna de um pequenino adultério. É como dizer-nos: «Não só estás apaixonado por uma pega, como ela é feia como breu.»
Os estrangeiros que nos visitam nunca compreendem isto. Lêem e ouvem dizer por todo o lado as maiores infâmias acerca de Portugal e não percebem porque é que todos lhe caem em cima no momento em que ele se atreve a dizer que um pastel de nata não está fresco, ou que tem a impressão de ter sido enganado no troco por um motorista de táxi.
Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo a resmungar e a queixar-se quando está perto de Portugal, sabe-se o que lhe acontece quando está há muito tempo longe dela. Os grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de olho já não vencem senão lágrimas. E pensa invariavelmente: «Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do que bem por outra donzela...»
Em quinto e último lugar (e o «Quinto» não é fortuito), temos a derradeira prova da paixão do português por Portugal. Tem a ver com a ideia que ele tem do que Portugal podia ser. Para cada português, «isto podia ser o melhor país do mundo se...» (Segue-se uma condição invariavelmente impossível de se cumprir). A miragem deste país potencial é um paraíso que agrava substancialmente o inferno que os portugueses já supõem aturar. Isto porque os portugueses graças a Deus, têm expectativas elevadíssimas. Nada abaixo do Quinto-Império pode garantir satisfazê-los. Nenhum português se contenta, por exemplo, só com pertencer à Europa. Aliás, só começaria a contentar-se caso fosse a Europa toda a pertencer a Portugal. (E mesmo assim, qual não seria o português, com um cepticismo que provém de um longo e civilizadíssimo cansaço cultural, que não desconfiasse logo que «isto agora da Europa pertencer a Portugal traz água no bico, com certeza...?»)
Estas expectativas insaciáveis revelam-se na saudável mania que têm os portugueses de comparar Portugal só com a pequena minoria de países que se encontram em muito melhor situação. Para um português, Portugal é o país mais pobre do mundo. Isto é, do mundo «que interessa». Se lhe falarmos nos demais 75% que estão piores que nós, diz logo: «Está bem, mas isso nem se fala...» Nem é preciso ser a Nicarágua ou o Bangladesh — basta mencionar a Grécia ou a Turquia para ele se virar para nós com ar despeitoso e incrédulo e dizer: «Ó filho, está bem, mas isso...»
É curioso notar que a Espanha goza de um estatuto especial nestas comparações. Nem conta como «melhor» nem «pior». A Espanha é sempre até, e a frase «Até na Espanha...» tem o significado precioso de chamar a atenção para um país reconhecidamente rasca onde, neste ou naquele aspecto, já estão escandalosamente melhores do que em Portugal. De qualquer modo, os espanhóis não são como nós. Acham, por exemplo, que é motivo de orgulho ser-se espanhol. Nisso pelo menos, estão muito piores que nós. Entretanto, compreende-se que o difícil não é amar Portugal — o difícil é deixar de amá-lo, também porque é sempre difícil nós sermos felizes.
Esta atitude é lógica, porque só há uma coisa pior do que se ser atraiçoado por quem se ama — é não se ser atraiçoado só porque o outro a acha feia e não a quer. À traição da mulher junta-se o insulto do outro, ao não achá-la sequer digna de um pequenino adultério. É como dizer-nos: «Não só estás apaixonado por uma pega, como ela é feia como breu.»
Os estrangeiros que nos visitam nunca compreendem isto. Lêem e ouvem dizer por todo o lado as maiores infâmias acerca de Portugal e não percebem porque é que todos lhe caem em cima no momento em que ele se atreve a dizer que um pastel de nata não está fresco, ou que tem a impressão de ter sido enganado no troco por um motorista de táxi.
Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo a resmungar e a queixar-se quando está perto de Portugal, sabe-se o que lhe acontece quando está há muito tempo longe dela. Os grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de olho já não vencem senão lágrimas. E pensa invariavelmente: «Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do que bem por outra donzela...»
Em quinto e último lugar (e o «Quinto» não é fortuito), temos a derradeira prova da paixão do português por Portugal. Tem a ver com a ideia que ele tem do que Portugal podia ser. Para cada português, «isto podia ser o melhor país do mundo se...» (Segue-se uma condição invariavelmente impossível de se cumprir). A miragem deste país potencial é um paraíso que agrava substancialmente o inferno que os portugueses já supõem aturar. Isto porque os portugueses graças a Deus, têm expectativas elevadíssimas. Nada abaixo do Quinto-Império pode garantir satisfazê-los. Nenhum português se contenta, por exemplo, só com pertencer à Europa. Aliás, só começaria a contentar-se caso fosse a Europa toda a pertencer a Portugal. (E mesmo assim, qual não seria o português, com um cepticismo que provém de um longo e civilizadíssimo cansaço cultural, que não desconfiasse logo que «isto agora da Europa pertencer a Portugal traz água no bico, com certeza...?»)
Estas expectativas insaciáveis revelam-se na saudável mania que têm os portugueses de comparar Portugal só com a pequena minoria de países que se encontram em muito melhor situação. Para um português, Portugal é o país mais pobre do mundo. Isto é, do mundo «que interessa». Se lhe falarmos nos demais 75% que estão piores que nós, diz logo: «Está bem, mas isso nem se fala...» Nem é preciso ser a Nicarágua ou o Bangladesh — basta mencionar a Grécia ou a Turquia para ele se virar para nós com ar despeitoso e incrédulo e dizer: «Ó filho, está bem, mas isso...»
É curioso notar que a Espanha goza de um estatuto especial nestas comparações. Nem conta como «melhor» nem «pior». A Espanha é sempre até, e a frase «Até na Espanha...» tem o significado precioso de chamar a atenção para um país reconhecidamente rasca onde, neste ou naquele aspecto, já estão escandalosamente melhores do que em Portugal. De qualquer modo, os espanhóis não são como nós. Acham, por exemplo, que é motivo de orgulho ser-se espanhol. Nisso pelo menos, estão muito piores que nós. Entretanto, compreende-se que o difícil não é amar Portugal — o difícil é deixar de amá-lo, também porque é sempre difícil nós sermos felizes.
Miguel Esteves Cardoso, in 'A Causa das Coisas'
estrelas novas
Com a força do seu olhar intelectual e da sua penetração espiritual cresce a distância e, de certo modo, o espaço que circunda o homem: o seu mundo torna-se mais profundo, avistam-se continuamente estrelas novas, imagens novas e novos enigmas. Talvez tudo aquilo em que o olhar do espírito exercitou a sua sagacidade e profundeza tenha sido apenas um pretexto para este exercício, um jogo e uma criancice e infantilidade. E talvez um dia os conceitos mais solenes, os que provocaram maiores lutas e maiores sofrimentos, os conceitos de «Deus» e do «pecado», não signifiquem, para nós, mais do que um brinquedo e um desporto de criança significam para um velho, - e talvez o «velho homem» tenha, então, necessidade de um outro brinquedo ainda e de um outro desgosto, - por continuar a ser muito criança, eterna criança!
Friedrich Nietzsche, in 'Para Além de Bem e Mal'
Pensamento do dia
Dado o comportamento cada vez mais doméstico e sopeiro de grande parte dos produtos depilados da confeitaria urbana não é de admirar que num futuro próximo todos sejamos apêndices, tipo almôndegas peludas?
Para acabar de vez com a cultura
O título é de um livro do Woody Allen. Não creio que ele, ou nós, imaginássemos que quando este livro foi escrito e a palavra cultura era um bilhete de identidade, esse mundo estivesse em vias de extinção. Cresci num mundo, poderia dizer, controlado pela cultura. Comíamos cinema clássico e filmes russos e alemães com sete horas (não eram pera doce), papávamos Bergman ao pequeno-almoço, e ninguém podia chegar à puberdade sem ter lido pelo menos um romance de Tolstoi e Dostoievski, de Stendhal e Flaubert. As meninas tinham de chorar com Alexandre Dumas e a Dama das Camélias e os rapazes tinham de ir aos pássaros e beijar uma Becky Thatcher (não é parente da Mrs.) com a leveza do Tom Sawyer. Passávamos uma tarde a preguiçar com Huckleberry Finn no Mississípi. mark Twain foi um pai para a literatura e para nós. Fomos caçar baleias com Melville.
Tínhamos de saber distinguir entre a sonoridade melancólica de Chopin e a alegria cantante de Mozart, entre quintas e nonas fossem as Beethoven ou as de Mahler. E tínhamos de saber distinguir Cole Porter e Irvind Berlin, John Ford e Howards Hawks. Tínhamos de saber as subtilezas de Nietzsche e Schopenhauer para participar numa discussão onde entrasse a palavra niilismo (e a palavra niilismo estava sempre a romper conversas) e tínhamos de saber a diferença subtil entre o materialismo histórico e o materialismo dialéctico. O cânone e a vulgata. Alguns de nós lemos "Das Kapital" (nunca passa de moda) e outros leram o proibido Livro Vermelho do camarada Mao. Ele há gente para tudo, como dizia o avô Maia. Eu falei n'"Os Maias"? Adorámos.
Havia que discutir política usando autores como Steinbeck e Caldwell à mistura com Hobbes e Burke e discutir política do género usando autores como Baldwin e Steinem. Havia que ver o Holocausto pelos olhos de Ophuls filho (havia o pai, Max) e argumentar colocando na mesma frase os nomes de Goethe e Weimar contra os de Hitler e Goebbels (hoje, à luz da nossa intimidade com o pensamento e o banco alemão, dá muito jeito). Os iniciados citavam Walter Benjamim e Schiller. Entre outros. E falavam do Aufklaurung. Romantismo? Antes o de Lord Byron que o do tolo Bernard Henry-Lévy.
E havia a poesia francesa, desaparecida em parte incerta. Toda a gente sabia o que se tinha passado nas masmorras da Sade e Casanova e entre Rimbaud e Verlaine em Bruxelas (não tinha a ver com subsídios e comissões) e toda a gente tinha lido "As iluminações" e "As flores do mal" (este é Baudelaire). Toda a gente tinha escolhido entre o "Prufrok" de Eliot e os "Cantos" de Pound (não é parente da moeda), entre a ilegibilidade de Joyce e a xenofobia de amis (o pai). Toda a gente venerava Conrad. E Becket. E Pinter. Toda a gente que quisesse ser moderna, bem entendido. As mulheres bebiam o protofeminismo de Virginia Woolf e os homens que apreciavam mulheres e touradas, caça grossa e boxe, subir o Kilimanjaro e pescar no mar alto, comiam Hemingway às colheradas. Toda a gente sabia, evidentemente, por quem dobravam os sinos (é por nós que eles dobram).
Podia continuar por aí fora mas não quero entrar nessa, como se diz em brasileiro. A nostalgia já não é o que era, dizia a Simone Signoret. Teria de falar da educação francesa pelos filmes de Duras e da educação sentimental pelos livros do Scott Fitzgerald. Teria de falar do Kubrick e do Fassbinder. Do Cézanne e do Gauguin. Do Van Gogh e do Monet. Não quero maçá-los.
Chamava-se cultura europeia. Os americanos praticavam-na (Henry James anyone?). Com a marca do modernismo e da "angst" e solipsismo do século XX. Sartre e Camus, Kafka e Musil. Thomas Mann. Tínhamos de subir "A Montanha Mágica". A cultura europeia, como bem escreveu o checo Milan Kundera, era na matriz uma cultura literária, a dos inventores do romance (já sei que os chineses tiveram romance uns séculos antes de Rabelais mas não sabem quem é o Homero e estou um bocado farta de chineses).
O último filme ("Meia-noite em Paris") de um judeu culto de Nova Iorque, educado pela cultura europeia (e, sendo judeu, parte construtiva dessa cultura), é uma homenagem irónica ao mundo extinto. À nostalgia (oh diabo, e os italianos? O "Amarcord" do Fellini? O Visconti? O Rosselini?). Extinto pela tecnologia, que é arrogantemente ignorante, e pela crise, que nos faz perder horas a coçar a cabeça à procura de tostões e a pensar que os economistas financeiros são pessoas com importância (leia Pessoa). Eu sei que a cultura já não é o que era. Deixemos que um bando de cretinos mande em nós. Cretinos? A definição é de Michel Houellebecq em "la carte et le Territoire". Talvez o último romance europeu do último romancista europeu.
Relógio da dívida pública mundial
As zonas a vermelho do mapa significam algo muito simples: vivemos a crédito no mundo ocidental. Devemos dinheiro aos nossos filhos e netos...Significa também que consumimos recursos muito acima das possibilidades do planeta.
http://www.economist.com/content/global_debt_clock
Galinhas No Orizonte
I. Nada precisa tanto de reforma como os hábitos dos outros.
II. Tudo o que é preciso na vida é ignorância e confiança; depois, o sucesso está garantido.
III. (Nunca esqueças) um banqueiro é um homem que te empresta o chapéu de chuva quando faz sol e que to tira quando começa a chover.
IV. A gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau.
II. Tudo o que é preciso na vida é ignorância e confiança; depois, o sucesso está garantido.
III. (Nunca esqueças) um banqueiro é um homem que te empresta o chapéu de chuva quando faz sol e que to tira quando começa a chover.
IV. A gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada, degrau por degrau.
«Discutimos infrutiferamente quase até ao nascer do dia. Não nos conseguimos entender através das palavras, mas os silêncios permitiram-nos ver claro em relação a muita coisa. Assim, antes da tomada de uma decisão, se reúnem os espíritos como médicos à cabeceira do enfermo. Um gostaria de recorrer à faca, outro quer poupar o doente, um terceiro preconiza a administração de medicamentos especiais. Que representam, porém, o juízo e a vontade dos homens, quando a perda já está inscrita nos astros? Mesmo assim, também os estados-maiores convocam o conselho de guerra antes das batalhas perdidas.»
- Ernst Jünger, "Sobre as Falésias de Mármore
É a incomensurável vantagem de quem, a concurso ou desfile, comparece de cascos. Insensível aos cravos, inexpugnável às balas.
«Estou de acordo, o homem é um animal, essencialmente criador, predestinado a aspirar a um fim na vida conscientemente e a dedicar-se à arte da engenharia, ou seja, a abrir para si mesmo um caminho, eterna e ininterruptamente, seja para onde for. Mas talvez lhe apeteça às vezes desviar-se para qualquer lado, precisamente porque é obrigado a abrir esse caminho, e também porque, por mais tolo que seja quem age directamente, talvez lhe aconteça de vez em quando pensar que esse caminho vai sempre seja para onde for e que o principal não consiste em que direcção segue, mas no próprio facto de seguir e em que a criança da boa moral não despreze a arte da engenharia e não se dedique à folga nociva que, como se sabe, é a mãe de todos os males. O homem gosta de criar e de construir caminhos, é indiscutível. Mas por que gosta também apaixonadamente da destruição e do caos? Vá, digam lá!»
Fiódor Dostoiévski, "Cadernos do Subterrâneo", Assírio & Alvim, 2000
Fiódor Dostoiévski, "Cadernos do Subterrâneo", Assírio & Alvim, 2000
O TABACO DA VIDA
De amor cantando,
sem nele demasiado acreditar,
dei a volta ao coração (demorei anos):
está só - mas sem nenhuma vontade de parar...
Desiludidos? Paciência, amigos...
Bebamos mais, fumemos, refumemos,
entre as mulheres, o tabaco e a vida.
Como cedilhas pendurados que felizes seremos,
exemplares cretinos nesta noite comprida...
Alexandre O'Neill, in "Poesias Completas" assírio & alvim, 2000
«Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso. Estava deitado de costas, sentia a carapaça dura e, ao elevar um pouco a cabeça, via a barriga arredondada, de cor castanha, dividida em faixas rígidas arqueadas, e no alto dela, a coberta da cama em equilíbrio instável, quase a resvalar. As muitas pernas, penosamente finas em comparação com a sua actual corpulência, tremiam diante dos seus olhos perplexos.»
Franz Kafka, "A Metamorfose", Quasi Edições, 2008
Franz Kafka, "A Metamorfose", Quasi Edições, 2008
Urnofobia ou respútrida
«- Que balbúrdia é esta?, perguntou o Chefe. Eu estava desesperado, mas tranquilo. Que vêm agora vocês...?!
- Os economistas dizem que é preciso cortar ainda mais nas despesas! - disseram de uma vez os Auxiliares, com respiração ofegante.
- Quais despesas?
- As dos outros!
- Ah, as dos outros! - Exclamou o Chefe, aliviado.
- Sim, Chefe, mas tal não nos deve descansar. Porque os economistas (e esta palavra era dita como se existisse receio de a repetir em voz alta) quando dizem que é urgente cortar as despesas dos outros não deixam de olhar para nós. E fixamente.
- Para nós?! - exclamou o Chefe, indignado. - Mas nós não somos os outros!
Subitamente todos se calaram, ao mesmo tempo, como se tivessem combinado.»
Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Kraus", Caminho, 2005
- Os economistas dizem que é preciso cortar ainda mais nas despesas! - disseram de uma vez os Auxiliares, com respiração ofegante.
- Quais despesas?
- As dos outros!
- Ah, as dos outros! - Exclamou o Chefe, aliviado.
- Sim, Chefe, mas tal não nos deve descansar. Porque os economistas (e esta palavra era dita como se existisse receio de a repetir em voz alta) quando dizem que é urgente cortar as despesas dos outros não deixam de olhar para nós. E fixamente.
- Para nós?! - exclamou o Chefe, indignado. - Mas nós não somos os outros!
Subitamente todos se calaram, ao mesmo tempo, como se tivessem combinado.»
Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Kraus", Caminho, 2005
Em tempo de guerra não se limpam armas
«Não é nenhum capricho! exclamou ela.
Então o que é? perguntei apavorado.
Despertou em mim esse instinto, disse ela tranquilamente como que reflectindo; talvez jamais visse a luz do dia se não o tivesse despertado, desenvolvido e agora ele atingiu uma força irresistível que enche meu ser, que me proporciona o prazer mais desejável e apesar disso tu querias que recuasse, tu, mas és tu um homem?»
Leopold von Sacher Masoch, “A Vénus de Kazabaika”, Edições Afrodite,1966
papel higiénico à-la-carte
"É uma ideia essencialmente repugnante, a de uma sociedade que se mantém unida apenas pelas relações e sensações despertadas pelo interesse pecuniário."
- John Stuart Mill
Laissez faire over
"Por esta altura já todos sabemos que desta guerra não há regresso a uma ordem social de laissez faire, e que a guerra como tal é a produtora de uma revolução silenciosa ao preparar o caminho para um novo tipo de ordem planeada."
- Karl Mannheim , 1943
O que fazer quando acaba o papel higiénico?
“Não consigo evitar o receio de que os homens cheguem ao ponto de ver em toda a teoria nova um perigo, em toda a inovação um problema penoso, em todo o progresso social um primeiro passo para a revolução, e se recusem terminantemente a mexer-se”
– Alexis de Tocqueville
Nascidos de um mesmo ventre humano, bizarras antíteses proliferam
"If you want to be important—wonderful. If you want to be recognized—wonderful. If you want to be great—wonderful. But recognize that he who is greatest among you shall be your servant. That's a new definition of greatness...it means that everybody can be great (Everybody) because everybody can serve."
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