Evgueni Zamiatine, Nós

Nós, a mais conhecida obra de Zamiatine, precursora do Admirável Mundo Novo (1930) de Huxley e de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1948) de Orwell – concluída em 1921 mas cuja primeira edição em russo só pôde sair perto de sessenta anos mais tarde –, abre assim:

«Limito-me a transcrever textualmente o que hoje mesmo veio publicado na Gazeta do Estado:

Dentro de cento e vinte dias ficará completo o Integral. Aproxima­-se a hora insigne, histórica, em que o primeiro Integral se levantará no espaço cósmico. Há mil anos, os nossos heróicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao domínio do Estado Único. Hoje assistiremos a um feito ainda mais glorioso: a integração, por meio do Integral, feito de vidro, eléctrico, ígneo, da eterna igualização de tu­do o que existe. Ficarão sujeitos ao benéfico jugo da razão todos os seres desconhecidos, os habitantes doutros planetas que porventura vivam ainda no estado selvagem de liberdade. Se acaso não percebem que nós lhes levamos a felicidade matemática e exacta. É nosso dever forçá-los a serem felizes. Mas, antes de puxarmos das armas, tenta­remos recorrer à palavra.

Em nome do Benfeitor, todos os números do Estado Único ficam notificados do seguinte:

Todos os que se sentirem capacitados deverão compor tratados, poemas, odes e outras composições sobre a beleza e a grandeza do Estado Único.

Eles constituirão o primeiro carregamento do Integral.

E viva o Estado Único. Vivam os números. Viva o Benfeitor!

Escrevo estas coisas e sinto o meu rosto a arder. Sim… há que levar a cabo a integração, proceder à grandiosa e infinita igualização de tudo o que existe. Sim, há que distender a curva selvagem, redu­zi-la a uma tangente… a uma assímptota… a uma linha recta! E isso porque a linha do Estado Único é uma linha recta. A grande, a divinal. A exacta, a sábia linha recta – a mais sábia de todas as linhas!»





"Olhei durante uns momentos para ela, tal como fizeram todos os outros. Ela já não era um número; era somente uma criatura humana, existia apenas enquanto substância metafísica do insulto que acabava de ser cometido contra o Estado Único. Mas um simples movimento fez-me ver que conhecia aquele corpo dúctil como um chicote; os meus olhos, os meus lábios, as minhas mãos conheciam-na, tinha disso a firme certeza.



Adiantaram-se dois guardas, procurando cortar-lhe o passo. As trajectórias deles e dela iam cruzar-se na calçada vítrea, clara, espelhada.



O meu coração engoliu em seco, estacou e sem pensar se tal acto era permitido ou proibido, absurdo ou ajuizado, avancei para o local. Senti em cima de mim dezenas de olhos, esbugalhados de medo, mas isso deu uma força ainda mais desesperada ao ser bárbaro de mãos peludas que de mim se libertou e deu em correr cada vez mais rápido.



Tinha eu dado um ou dois passos em frente quando ela se voltou… À minha frente estava um corpo trémulo, semeado de sardas, com umas sobrancelhas ruivas…



Não era… Não, não era a E-!



A alegria desesperada abandonou-me. A vontade que me deu foi gritar: “Detenham-na!” ou “Apanhem-na!”, mas o que chegou aos meus ouvidos foi o murmúrio dos meus lábios. Entretanto, senti no ombro uma mão pesada."



(Texto retirado de Evgueni Zamiatine, Nós, Lisboa, Antígona, pp. 156)

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